A Lei 14.8463/24 que entrou em vigor em abril deste ano, resultou em controversas mudanças na Lei de Execução Penal (Lei nº 7210/84) sobre a extinção do direito às saídas temporárias, mas também trata da obrigatoriedade de realização de exames criminológicos para toda e qualquer progressão de regime e ampliação das hipóteses de monitoramento eletrônico.
Antes de explicar sobre a extinção ao direito às saídas temporárias promovidos pela alteração legislativa, segue breves comentários sobre a (agora) antiga redação do art. 122 da LEP.
A saída temporária encontra previsão no art. 122 e seguintes da Lei de Execução Penal (LEP) e constitui um importante direito para a consecução das finalidades da execução penal, bem como para a garantia de que essa execução se paute pelo devido processo legal e respeito à dignidade humana, enquanto possibilidade de efetiva reintegração social.
Trata-se de uma das espécies de autorização de saída (a outra espécie é a permissão de saída) e aplica-se a apenados que cumprem pena em regime semiaberto, possibilitando a sua saída do estabelecimento prisional, por um prazo determinado e sem vigilância direta, por meio de uma autorização judicial.
Quanto as finalidades da saída temporária, conforme o art. 122 da LEP, são:
Visita à família: Não há limitação quanto ao grau de parentesco. O objetivo, neste caso, é restabelecer os laços familiares, reconhecendo que a família é um dos pilares que auxiliam na ressocialização[1].
Frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução: Esta hipótese é coerente com o acesso constitucional à educação preconizado no art. 205 da CF/88. No mesmo sentido, o art. 38 do Código Penal garante que o preso mantenha todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. Encontra-se respaldo também no art. 41, inciso VI, da LEP> Contudo, a legislação restringe a frequência do curso na comarca onde tramita o processo de execução penal. Caso o apenado deseje ou precise realizar curso em comarcar vizinha é necessário que haja autorização judicial[2].
Participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social: Esta é uma hipótese genérica, ampla, utilizada para atender a atividades que, por sua natureza, poderão colaborar com a reinserção social do apenado.
Quanto aos requisitos para obtenção deste direito, encontram-se no art. 123 da LEP, determinando que para ser concedida a saída temporária:
- Comportamento adequado, que se refere à conduta do apenado no interior do estabelecimento prisional.
- Cumprimento mínimo de 1/6 da pena, se o condenado for primário, e 1/4, se reincidente.
- Compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
No entanto, recentemente, a Lei 14.843/24 alterou alguns dispositivos da LEP para dispor sobre a monitoração eletrônica do preso, prever a realização de exame criminológico para progressão de regime e restringir o benefício da saída temporária.
Com a alteração legislativa, a saída temporária do preso para visita à família e participação em atividades que auxiliem no retorno social foram proibidas, mantendo o direito apenas para fins de estudo no ensino médio, supletivo ou cursos profissionalizantes.
Agora, conforme a lei em vigor, são excluídos desse direito os presos que foram condenados por crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra a pessoa.
Em resumo:
- Estão proibidas as saídas temporárias dos detentos, ou seja, presos não terão mais permissão para deixar a prisão em feriados ou visitar à família;
- Presos só podem deixar os estabelecimentos prisionais de maneira temporária para estudar
- Está vedada para condenados por crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra a pessoa.
Qual o impacto dessas mudanças nos processos de execução penal em andamento?
A Lei 14.843/24, que restringe a liberdade, tem conteúdo material ou de caráter penal, logo não pode retroagir e alcançar crimes cometidos antes de sua entrada em vigor, pois é prejudicial ao preso. A saída temporária é um instituto de natureza penal que afeta a satisfação do direito de punir do Estado. Portanto, a nova lei não retroage e só será aplicada para fatos novos (Princípio da irretroatividade da lei penal in pejus).
Não bastassem todas as mazelas do sistema penitenciário brasileiro, a Lei 14.843/24 viola os direitos da pessoa privada de liberdade e, também, preceitos constitucionais e convencionais do Brasil.
A lei que recebeu o nome de Lei Sargento PM Dias, em homenagem ao sargento Roger Dias da Cunha, da Polícia Militar de Minas Gerais, é motivada pelo episódio que envolveu a morte do sargento Roger Dias da Cunha, da Polícia Militar de Minas Gerais, em janeiro deste ano. Trata-se de um gesto que visa a responder uma comoção gerada a partir de um caso trágico, mas que não de modo algum representa o dia a dia da execução penal no Brasil[3].
As considerações acima são necessárias para deixar claro que, ao contrário do que se pretende fazer crer, as saídas temporárias passam por um rigoroso controle de análise dos seus requisitos e atingem apenas uma pequena parcela da população carcerária. Mesmo diante do quadro de intensas violações de direitos do sistema prisional, como já destacado acima, mais de 95% das pessoas que gozam do direito à saída temporária retornam regularmente à unidade prisional para a continuidade do cumprimento da pena, o que demonstra que o descumprimento da pena é exceção que atinge menos de 5% dos casos. Na maioria dos casos, esse “descumprimento” relaciona-se a atrasos, sendo mais raras as hipóteses de abandono. Nessas hipóteses, invariavelmente, há sustação do regime intermediário e a pessoa é novamente presa em regime fechado[4].
Eu, na condição de advogada criminalista atuante na execução penal, pesquisadora, professora e em nome dos meus clientes e seus familiares, que vivenciam o sofrimento e a violência do sistema penal, repudio essa alteração legislativa que afronta a Constituição e deslegitima os direitos da pessoa privada de liberdade.
Acesse a Nota Técnica elaborada pelo IBCCRIM clicando aqui
[1] ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Introdução à prática na execução penal: atualizado de acordo com a Lei 13.964/2019. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.
[2] ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Introdução à prática na execução penal: atualizado de acordo com a Lei 13.964/2019. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.
[3] Nota Técnica nº01/2024 elaborada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais junto com outras 60 organizações da sociedade civil.
[4] Nota Técnica nº01/2024 elaborada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais junto com outras 60 organizações da sociedade civil.