A história dos Racionais MC’s teve início em São Paulo, no ano de 1988. Eles se conheceram quando Mano Brown e Ice Blue foram ver o KL Jay e Edi Rock tocar no Clube do Rap, que na década de 80 ficava na Av. Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo. A inspiração para o nome do grupo veio de Tim Maia, mais precisamente do disco Tim Maia Racional. Em 1988, gravaram as primeiras músicas que entraram na coletânea Consciência Black, Vol. I, Tempos Difíceis e Pânico Na Zona Sul. Em 1990, gravaram o primeiro EP, Holocausto Urbano e no ano seguinte o segundo, Escolha O Seu Caminho. Nesses trabalhos, o grupo já mostrava a que veio: falar sobre a violência sofrida pelos jovens da periferia, o combate ao racismo e as desigualdades sociais.
Após os dois EPs, o primeiro álbum do Racionais MC’s foi lançado em 1993, com o nome de Raio-X Brasil. Nesta época, o grupo estava em evidência em São Paulo e já era muito conhecido na periferia. Duas músicas se destacaram no disco: a primeira foi Fim De Semana No Parque e, com isso, o grupo ganhou projeção em outros estados. Em seguida, veio o sucesso Homem Na Estrada. Quatro anos depois, um divisor de águas acontece na carreira do Racionais, com o lançamento de um dos álbuns mais aclamados do rap nacional, Sobrevivendo No Inferno, de 1997.
Foi no álbum Sobrevivendo No Inferno o lançamento da música Diário De Um Detento. O álbum vendeu aproximadamente 500 mil cópias e o clipe de Diário De Um Detento se destacou nas paradas da MTV e acabou conquistando dois prêmios no Video Music Brasil: Melhor Vídeo de Rap e Escolha da Audiência.
A música começa assim:
“São Paulo, dia primeiro de outubro de 1992, oito horas da manhã
Aqui estou, mais um dia.”
A primeira estrofe da música narra o início do dia dentro da Casa de Detenção do Carandiru. Um dia antes de um dos maiores e mais terríveis massacres ocorridos no Brasil. O Massacre do Carandiru.
As estrofes seguintes descrevem como são os dias dos detentos dentro da penitenciária. A letra traz as dores, tristezas e revoltas vividas pelos 7.257 detentos que sofriam com as mazelas do sistema prisional dentro do Carandiru e eram obrigados a conviver com a pneumonia e comer a comida azeda que era servida.
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá
Tanto faz, os dias são iguais
Acendo um cigarro, e vejo o dia passar
Mato o tempo pra ele não me matar
(…)
Tic, tac, ainda é 9:40
O relógio da cadeia anda em câmera lenta
No dia 02 de outubro de 1992, o dia amanheceu com sol e como diz a música “tudo funcionando, limpeza, jumbo”. Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, havia um jogo de futebol entre presidiários, a turma da alimentação contra os encarregados da faxina.
Por uns cinco ou seis que não têm nada a perder
Dois ladrões considerados passaram a discutir
Mas não imaginavam o que estaria por vir
Próximo do término do jogo, ocorreu uma disputa por espaço para pendurar roupa num varal entre dois detentos no segundo pavimento do Pavilhão 9, Antônio Luiz do Nascimento, conhecido como Barba e Luiz Tavares de Azevedo, conhecido por Coelho. Na briga entre Barba e Coelho, Barba é golpeado na cabeça por Coelho e precisa ser levado até a enfermaria que ficava no Pavilhão 4. Já Coelho é agredido por três guardas penitenciários à vista de outros detentos e levado embora. O portão da escada que leva ao segundo pavimento é trancado pelos guardas. Os presidiários reagem, quebram a fechadura, iniciam um tumulto. A confusão cresce, há brigas entre os detentos e o alarme soa.
Fumaça na janela, tem fogo na cela
Fudeu, foi além, se pã, tem refém
Pelo telefone direto instalado na guarita, o PM Leal se comunica com o Batalhão da Guarda alertando que há rebelião no Pavilhão 9. Carcereiros tentam, sem sucesso conter as brigas entre os detentos. Os presos destroem o local, carregam cadeados e correntes e se trancam no Pavilhão 9. É impossível a fuga dos detentos. Não há reféns. Não há qualquer reivindicação por parte dos presos. O espaço é controlado pelos presos para um acerto de contas entre eles, conforme as “leis da massa”. A luta continua lá dentro e há fogo no Pavilhão. Os bombeiros são chamados. A “casa virou” e o Pavilhão 9 está sob controles dos detentos.
Depende do sim ou não de um só homem
Que prefere ser neutro pelo telefone
O coronel Ubiratan Guimarães, comandante do Policiamento Metropolitano, toma conhecimento do tumulto na penitenciária por meio do rádio do Comando de Policiamento (Copom). O Coronel se dirige até o local e apresenta-se ao diretor do Presídio. Um telefonema é dado para o secretário Estadual de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, que por sua vez se comunica com o Governador Antônio Luiz Fleury Filho. Assim se oficializava a passagem do comando da situação para a Polícia Militar. A avaliação sobre a necessidade de uma invasão policial do presídio é atribuída pelas autoridades superiores ao Coronel Ubiratan Guimarães.
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!
As tropas de choque, sob as ordens do Coronel Guimarães, estacionaram do lado de fora da Casa de Detenção com o objetivo de entrar no estabelecimento. As autoridades reunidas no momento deliberaram que, antes de invadir o Pavilhão 9, o diretor da Casa de Detenção iria tentar uma negociação com os presidiários. Depois de cerca de treze minutos para romper, com um reforçado alicate, as correntes e o cadeado que mantinham fechado o portão do Pavilhão 9, o diretor podia, então, iniciar as negociações. Não houve negociação alguma. As tropas da Polícia Militar afastaram do caminho o diretor da Casa de Detenção e invadiram desorientadamente o Pavilhão 9.
Adolf Hitler sorri no inferno!
O Robocop do governo é frio, não sente pena
Só ódio e ri como a hiena
A ocupação do pavilhão 9 começou às 16h 30 min e terminou aproximadamente às 18 horas, quando todos os pavimentos foram ocupados e os presos foram removidos, nus, para o pátio interno. Trezentos e vinte cinco homens da tropa de choque da Polícia Militar, fortemente armados, entraram atirando no Pavilhão 9. O armamento bélico usado indica que os policiais militares estavam engajados numa operação de guerra.
Ao final do confronto foram encontrados 111 detentos mortos: 103 morreram vítimas de disparos (515 tiros ao todo) e 08 morreram devido a ferimentos cortantes. Não houve policiais mortos. Houve ainda 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais militares. Os presos mortos foram, quase todos, atingidos por disparos de arma de fogo e, em regra, na parte superior do corpo, nas regiões letais como a cabeça e o coração. O alvo sugere a intenção de matar.
Os laudos periciais concluíram que vários detentos mortos estavam ajoelhados, ou mesmo, deitados, quando foram atingidos.
Ratatatá! Sangue jorra como água
Do ouvido, da boca e nariz
O Senhor é meu pastor
Perdoe o que seu filho fez
Morreu de bruços no salmo 23
Sem padre, sem repórter
Sem arma, sem socorro
O perito criminal Osvaldo Negrini, que esteve no local da chacina, em depoimento, afirmou que não houve confronto entre policiais e detentos, porque os presos do Pavilhão 9 não tiveram a possibilidade de reagir. Alguns dos detentos, depois da chacina, ainda tiveram que ajudar os policiais a coletarem os corpos dos mortos. O Massacre, além de causar o assassinato de pelo menos 111 pessoas, também foi responsável pela proliferação de doenças que já eram causa de muitas mortes dentro do local. O derramamento de sangue intensificou essa disseminação, principalmente do vírus HIV.
A versão oficial dada pela polícia relata que a situação estava fora do controle no Pavilhão 9 e depois de tentativas frustradas de negociação, o Coronel Ubiratan teria decidido invadir o local com um número menor de 86 policiais. Já a versão contada pelos presos sobreviventes e por grupos dos Direito Humanos difere das informações oficiais. Segundo eles, o número de mortes seria mais de 200 pessoas mortas por mais de 300 policiais. Eles alegaram que após a conversa com o Diretor do Carandiru, os presos decidiram pôr fim à rebelião, e muitos haviam entregado suas armas e permaneceram dentro de suas celas.
Traficantes, homicidas, estelionatários
Uma maioria de moleque primário
O presídio do Carandiru possuía sete pavilhões divididos em blocos. Para o pavilhão 9, onde ocorreu o massacre, normalmente, se destinam os presos primários, ou seja, os que não eram reincidentes.
Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
O governador do Estado de São Paulo na época era Antônio Luiz Fleury Filho, do PMDB, ex-secretário de Segurança Pública do governador Orestes Quércia. Apesar de ter derrotado eleitoralmente Paulo Maluf no segundo turno das eleições de 1990, o governador Fleury não havia adotado uma política de segurança pública que viesse a coibir a violência policial ilegal até o caso do Carandiru. O governo de Fleury era pautado para o recrudescimento do uso da violência no combate à criminalidade, conforme demonstra a declaração do secretário de Segurança Pública do governo: “Não dá para dar botão de rosa para marginal” (Folha de São Paulo, 07/08/91)”.
O massacre do Carandiru aconteceu numa sexta-feira de forte efervescência política. Naquele mesmo dia, o então presidente Fernando Collor de Mello fora afastado por um processo que posteriormente culminaria no seu impeachment. No plano municipal, era véspera do primeiro turno de uma eleição que, ao final, elegeu Paulo Maluf prefeito.
As primeiras notícias a respeito do que ocorreu no Carandiru mencionavam a rebelião e a ação policial, mas sem informações claras acerca da dimensão do que se passara ali. Apesar dos rumores e a despeito da pressão dos familiares e da sociedade civil, o número de vítimas e a verdadeira extensão dos fatos foram silenciados por mais de 24 horas e apenas foram revelados no sábado, dia 3, após o fechamento das urnas.
O Carandiru foi demolido em 2003, durante a gestão do então governador Geraldo Alckmin.
Como consequência do Massacre do Carandiru surgiu o Primeiro Comando da Capital, PCC, como objetivo de evitar que mais massacres acontecessem. E assim está no art. 13 do Estatuto do PCC:
“Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre, semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde 111 presos, (sic) foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Por que nós do Comando vamos sacudir o Sistema e fazer essas autoridades mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiça, opressão, torturas, massacres nas prisões.”
Em 2013 ocorreu o julgamento de 23 PM’s. O tenente-coronel Ubiratan Guimarães, comandante das tropas da Polícia Militar, chegou a ser condenado pela Justiça, em 2001, a 632 anos de prisão pelos assassinatos de 102 presos. Em 2006, no entanto, Ubiratan se tornou deputado estadual pelo PTB e passou a ter foro privilegiado. Julgado naquele ano pelo Tribunal de Justiça (TJ) em São Paulo, ele foi absolvido. Os magistrados consideraram que o então PM não participou da ação. Ubiratan foi assassinado em 2006, dentro do seu apartamento.
Entre 2013 e 2014, ocorreram mais cinco júris populares, com 74 policiais condenados pelos homicídios de 77 detentos. As penas que eles receberam variam de 48 anos a 624 anos de prisão. Como cinco dos PMs condenados morreram, 69 agentes terão as penas revisadas pelos desembargadores da 4ª Câmara do TJ.
Em novembro de 2022, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu o trânsito em julgado de duas decisões que mantiveram a sentença do Superior Tribunal de Justiça de restabelecer as condenações de policiais militares envolvidos no massacre do Carandiru. Barroso determinou ainda a remessa dos autos para o Tribunal de Justiça paulista. A avaliação de fontes ligadas ao Ministério Público é a de que a Corte paulista pode até expedir mandados de prisão contra os 74 policiais militares condenados pelo Tribunal do Júri a penas que vão de 48 anos a 624 anos de prisão pelo assassinato dos presos. O TJ vai analisar uma apelação dos agentes e estabelecer as penas – sendo que de tal decisão pode caber recurso.
O massacre do Carandiru completou 30 anos no dia 02 de outubro de 2022 e continua sendo lembrado como um episódio extremamente perturbador e bárbaro. Uma política de morte que continua até hoje dentro das penitenciárias. O sistema penitenciário brasileiro é um grande depósito de pessoas (que não são tratadas como pessoas) deixadas para morrer.
A letra de “Diário de um Detento” foi escrita por Mano Brown e Josemir Prado, ex-detento que sobreviveu à chacina e entregou trechos do que se tornaria música nas mãos do rapper dentro da própria prisão.
Recentemente, a Netflix lançou um documentário sobre os Racionais MC’s, intitulado Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo. A produção mostrará a origem e a ascensão do grupo formado por Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock.
Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte,
não temeria mal algum, porque tu estás comigo;
a tua vara e o teu cajado me consolam;
Salmo 23
Dia 03 de outubro, diário de um detento.
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Referências:
Diário de um detento: o clipe que narrou a brutal realidade do sistema carcerário brasileiro – https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/diario-de-um-detento-o-clipe-que-narrou-a-brutal-realidade-de-sistema-carcerario-brasileiro.phtml
Conheça a história do Racionais MC’s, lenda viva do rap nacional – https://www.letras.mus.br/blog/historia-do-racionais-mcs/
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/1025/28-anos-do-massacre-do-carandiru
CALDEIRA, Cesar. Caso do carandiru: um estudo sócio-jurídico. https://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/23-encontro-anual-da-anpocs/gt-21/gt21-15/5021-ccaldeira-caso-do/file
Carandiru: 30 anos do massacre que ainda não acabou – https://www.brasildefato.com.br/2022/09/30/carandiru-30-anos-do-massacre-que-ainda-nao-acabou
MACHADO, Maíra Rocha et al. Carandiru: violência constitucional e a continuidade do massacre. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 21, n. 105, p. 304-325, nov./dez.. 2013. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=102787. Acesso em: 21 nov. 2022.
Massacre em SP que matou 111 presos no Carandiru completa 30 anos sem prisões de PMs condenados ou desfecho na Justiça – https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/10/01/massacre-em-sp-que-matou-111-presos-no-carandiru-completa-30-anos-sem-prisoes-de-pms-condenados-ou-desfecho-na-justica.ghtml
Massacre do Carandiru: STF encerra processo e policiais podem ser presos –https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/11/17/massacre-do-carandiru-stf-encerra-processo-e-policiais-podem-ser-presos.htm